O risco da adaptação contábil
A função a ser desempenhada pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) é bastante delicada. Ao CPC cabe internalizar as normas contábeis elaboradas de acordo com os padrões internacionais de contabilidade, conhecidos como International Financial Reporting Standards
(IFRS). Numa primeira vista, essa função parece ser simples, o que, de fato, não é.
Por um lado, o CPC não pode, simplesmente, verter para o português as normas contábeis que, na sua origem, são redigidas em inglês (desde Londres, a sede do “International Accouting Standards Board” – Iasb). Para se obter um texto dessas normas no vernáculo existe a tradução oficial do Instituto dos Auditores Independentes do Brasil (Ibracon).
A tarefa do CPC é redigir as normas contábeis brasileiras que passam a ter força vinculante com a aprovação pelo Conselho Federal de Contabilidade (CFC) e pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
Acontece que, de outro lado, o CPC tampouco pode adaptar os IFRS à realidade brasileira. Adaptar significa modificar um texto para torná-lo mais de acordo com o público a que se destina, então, o processo de adaptação implica modificação do texto original.
E constatar-se que houve mudança nos textos primitivos dos IFRS tem como corolário a não aderência das normas contábeis brasileiras aos padrões internacionais de contabilidade. Estar-se-ia escrevendo um “IFRS brasileiro”. Inclusive, alguns doutrinadores das ciências contábeis, como Christopher Nobes, não reconhecem que o Brasil como um país que adote os IFRS no seu direito contábil, o que pode trazer alguns inconvenientes para as empresas brasileiras no mercado internacional, especialmente de capitais.
Nesse mesmo sentido, as auditorias externas têm apresentado parágrafo de ênfase nos seus relatórios sobre demonstrações financeiras de companhias brasileiras, reconhecendo que não foram seguidas determinadas normas internacionais de contabilidade. Os exemplos mais marcantes são a adoção do método de equivalência patrimonial e o reconhecimento de receita nas empresas que atuam na incorporação imobiliária.
Para encontrar o meio termo entre traduzir e adaptar, evoco um capítulo da minha tese de doutoramento (“Paz tributária entre as Nações”), referente à aproximação legislativa. Podem ser identificados três níveis de aproximação legislativa: coordenação, harmonização e uniformização.
Na coordenação de leis (soberanas de cada país), são estabelecidos princípios gerais que elas devem seguir. Seria, por exemplo, no caso específico da lei contábil, estabelecer-se o respeito ao regime de competência, e só.
Na harmonização de leis, além dos princípios gerais, haveria algumas regras comuns, tais como, registro do ativo considerando transferência de riscos e benefícios ou mensuração do valor justo, porém, preservando a autonomia da lei contábil de cada país decidir sobre outros assuntos (a maioria deles). Finalmente, na uniformização, como o nome sugere, todos os países que assim optassem aplicariam a mesma lei contábil.
À luz dessa distinção e levando em conta a motivação do Brasil de ingressar na competição do mercado internacional, é inevitável a conclusão de que foi o atual marco regulatório contábil brasileiro decidiu pela uniformização da lei contábil. Com isso, a função jurídica do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) é normatizar a contabilidade brasileira de modo a propiciar a aplicação dos IFRS pelas empresas brasileiras.
Na elaboração das normas contábeis infralegais, o CPC não vai traduzir os IFRS, o que significa que sequer precisa ser feita uma versão literal do texto original em vernáculo, porque isso pode afetar conceitos já consolidados na doutrina brasileira (veja-se a equivocada utilização do termo “contrato oneroso” na norma sobre provisão). Tampouco o CPC vai adaptar os IFRS à conveniência das empresas brasileiras, criando efetivamente normas contábeis tupiniquins ou interpretações forçadas.
A função do CPC é tão nobre quanto complicada. A base das suas normas é, evidentemente, o texto da lei contábil e a sua preocupação deve ser a aplicação dos IFRS no ambiente contábil das empresas brasileiras, tal como os usuários – internos e externos – das demonstrações financeiras esperam que seja.