A indústria encalhada
Fragilizada por décadas consecutivas de políticas equivocadas ou insuficientes e crises econômicas, a indústria brasileira cambaleia. Atingida por três quedas trimestrais consecutivas do valor agregado, de -0,1%, -0,2% e -0,8% entre outubro de 2013 e março deste ano, sofreu mais um baque. Em abril, a produção industrial brasileira recuou 0,3% comparada à de março, segundo o IBGE. Há uma “crise manifesta no fraquíssimo e titubeante desempenho de seu setor nuclear, o de intermediários e retração de seus segmentos mais dinâmicos, de bens de capital e de duráveis”, diagnosticou o Iedi, think tank do setor. “Três trimestres de queda é recessão.”
Comparado à situação de um ano atrás, o quadro é “desastroso”, avalia o economista Julio Gomes de Almeida, professor da Unicamp e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. A queda na indústria em geral chegou a 5,8% e, em bens de capital, a quase 15%. Os setores de máquinas e equipamentos, vestuário, calçados e têxteis perderam entre 15% e 25% de produção para produtos importados. Em informática e produtos eletrônicos, máquinas e aparelhos elétricos, metalurgia e veículos, o recuo ficou entre 10% e 15%. As indústrias farmacêutica, de produtos químicos, celulose e papel e alimentos mantiveram uma “situação vegetativa” e só perfumaria, produtos de limpeza e bebidas evoluíram, com aumento de produção acima de 20%.
A causa principal da debacle é a crise mundial, redutora de exportações brasileiras e catalizadora da disputa externa pelo mercado doméstico. Em segundo lugar aparecem os efeitos acumulados da perda da terceira revolução industrial e da crise da dívida externa, entre os anos 1970 e a década de 1980; da abertura comercial com câmbio valorizado e juros altos nos anos 1990; e da manutenção dos juros altos e do real valorizado a partir de 2003, com desperdício da oportunidade representada pela redução da dívida pública, acumulação de reservas e elevação dos preços internacionais das commodities exportadas. O terceiro fator é a demora ou o insucesso do atual governo na conversão da ênfase no consumo para o estímulo ao investimento.
Esperar melhoras significativas da política para o setor neste momento seria perda de tempo. Com reservas cambiais de quase 400 bilhões de dólares, desemprego baixo e inflação dentro da meta, ainda que no teto, o governo evitará valorizações do real e reduções dos juros capazes de alimentar a inflação e atingir o emprego em pleno período eleitoral. Contas externas e públicas no limite, uma alta generalizada e resistente de preços, o esgotamento da capacidade de endividamento dos consumidores e o adiamento dos investimentos dos empresários reduzem a margem de manobra.
A indústria sobreviveu por meio da substituição da produção local de insumos por importados, diz o economista Rodrigo Sabbatini, diretor da Facamp, de Campinas. Um exemplo é a “retirada do carburador e importação da injeção eletrônica. O carro fica competitivo em preço e qualidade. O problema é que produzíamos o carburador no País e deixamos de fazê-lo”. Também é comum uma indústria com seis linhas manter apenas uma delas e importar os produtos acabados correspondentes às outras cinco, etiquetando-os com a sua marca brasileira. “Para o industrial é uma estratégia boa porque ele mantém a marca, o serviço de assistência técnica e de pós-venda. Mas ele não é mais um industrial, é um comerciante sofisticado”, define Sabbatini. Provavelmente aumentará seus lucros, mas a geração de empregos no País será menor. Para a economia, o movimento é destrutivo, “esburaca o tecido da indústria”.
Os complexos eletroeletrônico, químico-fármaco e de bens de capital são os mais afetados pelas importações, aponta o economista Antônio Correa de Lacerda, da PUC-SP. “Dos cerca de 100 bilhões de dólares de déficit do setor industrial, 80% estão nesses três grupos, de maior sofistificação e competitividade.”
Sob enxurradas de componentes e produtos importados (quase sempre da China), a indústria põe todas as fichas na perspectiva de acordos comerciais internacionais. A aposta minimiza o fato de a crise global de setembro de 2008 ter acirrado a concorrência pelos mercados mais dinâmicos no mundo, entre eles o brasileiro. Em conversa com a chanceler Angela Merkel, no Brasil para assistir à Copa do Mundo, Dilma Rousseff cobrou empenho da Alemanha para mobilizar outros países do continente pelo acordo da União Europeia com o Mercosul. Um indício de que o governo, antes dividido, “está unido pelo tratado comercial defendido por quase todas as entidades empresariais”, diz Elizabeth de Carvalhaes, presidente-executiva da Indústria Brasileira de Árvores (Ibá), associação dos fabricantes de papel, celulose, painéis e laminados de madeira. “A vida inteira condicionei a abertura do Brasil para acordos internacionais a uma reforma tributária profunda, para evitar prejuízo à indústria local.
As mudanças não aconteceram e mudei de opinião. Hoje acho que, se você abrir o mercado brasileiro, o impacto vai ser tão grande que motivará a reforma.” Para Fernando Figueiredo, presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria Química, “se quisermos abrir só quando estivermos seguros, nunca faremos isso. Vamos acertar com a Europa e pensar nos EUA”. Thomaz Zanotto, diretor do Departamento de Relações Internacionais e Comércio Externo da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, brinca: “É melhor um final com horror a um horror sem fim”.
Em documento recente, a Fiesp defende “prioridade imediata” ao acordo Mercosul-União Europeia, pelo “potencial de incrementar exportações brasileiras e catalisar transferência de tecnologia”, sem dizer como isso ocorreria. “O equívoco começa quando os proponentes da abertura comercial pura e dura lhe atribuemvirtudes sobrenaturais e desconhecidas na literatura econômica relevante sobre o tema”, critica Luiz Gonzaga Belluzzo, consultor editorial de CartaCapital.
A relutância anterior de setores do governo parece uma atitude prudente e o empenho atual sugere uma busca de aprovação por um empresariado ressabiado em vez de uma estratégia econômica cuidadosamente planejada. Mas a posição da Fiesp não é consensual. A Abimaq condiciona a abertura e o acordo à redução do custo Brasil, de 37%, diz o diretor Lourival Júnior Franklin.
Favorável à realização de acordos comerciais sob determinadas condições, o economista David Kupfer, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do BNDES, identifica um problema na abordagem do tema. “A mentalidade brasileira ainda é muito focada em integração comercial. Analisa-se a capacidade de esses acordos ampliarem mercados, mas é preciso considerar também a capacidade de eles promoverem a integração produtiva e aumentarem a eficiência e a competitividade da indústria.”
Apenas com um setor industrial forte e inserção adequada nas cadeias de suprimento globais será possível explorar em benefício do País o grande potencial da infraestrutura, das obras de mobilidade e do pré-sal e encaminhar o almejado crescimento sustentável. Nos últimos dez anos, foram criadas políticas de apoio à indústria, mas os resultados têm sido decepcionantes. Na quarta 28 de maio, o governo anunciou o retorno do programa Reintegra, de devolução às empresas de até 3% do valor das exportações de manufaturados. Comprometeu-se a manter o Programa de Sustentação do Investimento do BNDES, para empréstimos subsidiados. As medidas incluem uma nova lei do Refis da crise, para parcelamento de débitos tributários e a definição de uma política de conteúdo nacional nas compras governamentais.
São medidas pontuais. “A taxa de juro real do Brasil é a maior do mundo há dez anos. É um conluio pró-juro alto do qual a classe média é sócia. Para mudar essa situação, não adianta o governo conversar com economistas de bancos”, diz Lacerda. “O governo está preso na camisa de força ortodoxa”, avalia Gomes de Almeida.
Com as suas dimensões, a grande distância da Europa e América do Norte e o tamanho do mercado interno, seria absurdo o País limitar-se a importar produtos industriais e exportar commodities, como querem alguns. “Os países evitam a dependência de commodities por ser um mercado muito volátil. A renda recebida do exterior aprecia o câmbio e causa a chamada doença holandesa, com estímulo à importação e à desindustrialização”, observa Lacerda. “Não existe país desenvolvido sem uma indústria estabelecida geradora de empregos diretos e indiretos e de encadeamentos produtivos”, diz Sabbatini.
“Desafortunadamente, com o surgimento do discurso da sociedade pós-industrial no cerne das ideias e a crescente dominância do setor financeiro no mundo real, a indiferença em relação à manufatura foi convertida em falta de respeito. A manufatura, argumenta-se com frequência, na nova ‘economia do conhecimento’ é uma atividade de baixa categoria reservada aos países de baixos salários”, diz Ha-Joon Chang no livro Economics: The user’s guide. “Mas as fábricas são os lugares onde o mundo moderno é e continuará a ser feito. Acima de tudo, mesmo no nosso suposto mundo pós-industrial, os serviços, o propalado novo motor da economia, não podem se desenvolver com sucesso sem um setor manufatureiro vibrante.”