Leão com disfarce de James Bond
Um mendigo atrás de milhões de dólares desviados dos cofres públicos faz ponto em uma rua do centro de São Paulo observando a movimentação dos sonegadores em plena luz do dia. Pode parecer roteiro de filme de ação, daqueles dignos de James Bond, mas é vida real. O disfarce é apenas um dos expedientes usados pela equipe de 160 funcionários da Inteligência da Receita Federal, que, em 85 missões realizadas em todo o país, de 2008 até o ano passado, recuperou R$ 20 bilhões em tributos sonegados.
Pela primeira vez desde que foi fundada, há exatos 12 anos, a coordenação de pesquisa e investigação da Receita revela como monta as grandes operações que ganham as manchetes do país, detalhando alguns golpes recorrentes aplicados por sonegadores, fraudadores de impostos e contrabandistas. Esses funcionários, no dia a dia, evitam a mídia como podem, desconversam sobre novas operações e detestam falar ao telefone. Têm todas as cismas dos espiões.
Esse grupo restrito de funcionários especializados, que em nada se parece com o resto da burocracia do serviço público, precisa usar a criatividade para não perder o rastro dos suspeitos. Seguem o noticiário com lupa atrás de sinais externos de enriquecimento, frequentam restaurantes e outros estabelecimentos usados por seus alvos para chegar ao resto da cadeia.
Por questão de segurança, detalhes ou rotas não podem ser revelados para não comprometer as investigações em curso. Mas o fato é que um punhado desses agentes teve de fazer até curso de artes cênicas para tornar verossímil os vários disfarces que utilizam na caça aos sonegadores. Um agente acompanhou de perto uma das operações com um disfarce que exibia sintomas de uma doença contagiosa.
— Ninguém olhou para ele — orgulha-se um colega.
Inteligência permitiu operação na Daslu
Balanço feito a pedido do GLOBO mostra que, nos últimos quatro anos, essas operações resultaram em 716 prisões e 2.101 mandados de busca e apreensão. Somente em 2011, a Receita recuperou R$ 4,64 bilhões, efetuou 227 prisões e expediu 837 mandados.
A Operação Pomar — assim batizada por chegar a dezenas de laranjas envolvidos com contrabando — desbaratou uma quadrilha que abastecia mercados importantes de São Paulo com tecidos, roupas e acessórios como zíperes. Os envolvidos teriam deixado de recolher aos cofres públicos R$ 1,4 bilhão. A quantidade de apreensões foi tal que o Fisco precisou lacrar os estabelecimentos dos distribuidores para armazenar mercadorias que poderiam ocupar um quarteirão inteiro.
— O problema foi onde guardar tudo. Não imaginávamos que o volume seria tão grande — contou ao GLOBO o coordenador-geral de pesquisa e investigação da Receita, José Minuzzi.
O mais novo desafio é o caso do bicheiro Carlinhos Cachoeira. A equipe da Inteligência já começou a fazer o cruzamento de dados financeiros dos envolvidos atrás de laranjas, desvios de recursos e sonegação. Somente agora o Fisco teve acesso à investigação.
É assim que funciona. Muitas vezes, os investigadores só têm permissão da Justiça para trabalhar as informações tempos depois do começo da operação. O sinal verde para usar o conteúdo de escutas telefônicas (que também precisam ser autorizadas pelo Judiciário), por exemplo, pode levar anos e sair apenas ao fim das investigações.
Foi assim que chegaram aos casos que desencadearam operações como a Alquimia — que resultou na prisão de um grupo de VIPs numa ilha na Bahia — em agosto de 2011. E a que resultou na prisão e autuação dos proprietários da Daslu em 2005.
A parceria com a Polícia Federal é frequente e faz a diferença no trabalho da Inteligência.
— Às vezes, a escuta nem é tão importante. Só de saber quem liga para quem e com que frequência pode juntar os elos. O telefone pode estar em nome de uma pessoa, mas a conta é entregue para outra. Isso é importante — explica Minuzzi.
Não escapam do olhar minucioso sequer pequenos anúncios de jornal que indicam formas de driblar o Fisco. Ou outros indícios. No ano passado, o contribuinte que tentou enviar 281 vezes a mesma declaração do IR chamou a atenção da equipe. Tratava-se de um contador que testava as novas travas do programa para saber até onde poderia engordar a restituição dos seus clientes ou fazê-los deixar de pagar imposto.
De acordo com dados da Receita, as principais operações acabam se concentrando nos maiores estados. Afinal, é neles que circula a maior parte da riqueza do país. Os próprios sonegadores têm especial apreço pelas grandes praças. Acreditam que, assim, poderão passar despercebidos no meio de um mar de empresas e operações comerciais e financeiras. Recentemente, o Fisco chegou a um grupo de Goiânia que declarava o endereço fiscal em São Paulo.
Estudo feito pela Receita ao qual O GLOBO teve acesso mostra que as operações acabam tendo um efeito importante sobre a arrecadação, não apenas das empresas-alvo, como também dos setores econômicos e das próprias regiões geográficas afetadas. Três anos antes da Operação Secos e Molhados, os envolvidos arrecadavam R$ 250 mil. No primeiro ano após a operação, passaram a recolher R$ 3 milhões.
— Essas operações, por menores que sejam, têm efeito pedagógico sobre os setores impactados — disse Minuzzi.
Na rota do contrabando e da pirataria estão os caminhos por terra percorridos a partir das fronteiras no Paraná e no Mato Grosso, por exemplo. Informações da inteligência chegaram a caminhões de abóboras recheadas de eletrônicos.
No trajeto marítimo, o problema não está apenas nos navios que atracam nos portos com produtos à margem da lei, subfaturados ou não. Mas naqueles que partem para o exterior sem revelar o que carregam de fato, ou que param pelo caminho — no Uruguai, por exemplo, antes de chegar ao destino final na Holanda — para tentar escapar de tributos. Até o vizinho do Mercosul não há impostos pesados. E, a partir dele, os tributos são menos onerosos do que no Brasil.